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sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Exposição de José Luís Neto


A galeria do IPT inaugurou a 30 de outubro de 2008, com uma exposição do artista José Luís Neto intitulada PMC/ P.M.I. Passport. Esta exposição irá decorrer até 22 de novembro de 2008.


PMC/ P.M.I. Passport, um dos mais recentes projectos de José Luís Neto, começa com um acaso - a descoberta acidental, numa rua de Lisboa perto de sua casa, de um conjunto de 26 fragmentos das conhecidas tiras fotográficas típicas de uma cabine de photomaton espalhadas pelo chão. Acto irresistível para quem a fotografia é o centro da sua atenção, estes pedaços de papel rasgado foram recolhidos e cuidadosamente guardados em bolsas individuais de conservação. Na sua quase totalidade, são imagens falhadas em relação aos aspectos técnicos e representam todas a mesma pessoa, em momentos diferentes ao longo de um período de tempo indefinido.
Com origem em 1926, pela mão de um siberiano imigrado nos Estados Unidos, Anatole Josepho (1894-1980) e na sequência de pelo menos duas patentes francesas falhadas em finais de oitocentos, foi rápida a disseminação e popularidade destas máquinas cuja venda dos direitos de exploração nacional a uma empresa de nome Photomaton, logo em 1927, renderam ao seu inventor a quantia de um milhão de dólares. Tratava-se de uma máquina automática que, sem o auxílio de um operador, permitia a feitura de oito retratos em oito minutos. Eram positivos directos em papel, sem a intermediação de negativo (e esta ausência de prova residual acabará por influenciar o seu uso, como adiante veremos). De um ponto de vista formal os resultados eram muito próximos da fotografia de identificação policial cujos princípios tinham sido estabelecidos em finais do século XIX a partir da antropometria de Alphonse Bertillon (1853-1914): retrato frontal, apenas incidindo sobre a cabeça, cortada pela linha de ombros, sempre à mesma distância por causa da escala, contra um fundo neutro e com iluminação frontal (a que acrescia uma vista lateral, de perfil, nas mesmas condições, a que se veio juntar uma terceira a três quartos).
Esta semelhança formal e processual garantiu, e tem garantido, duas vidas paralelas a esta produção de imagens. Rapidamente o sistema burocrático a adoptou na sua febre de inventariação individual e ao longo da sua existência uma pessoa passou a necessitar da sua imagem para toda uma série de actos tornados administrativos que a transformam, cada vez mais, numa parte do próprio processo. Esta tipologia de representação, na sua extrema normalização, apaga a identidade em favor da mera identificação e nesta medida todos os rostos se assemelham e são um só: aqui somos todos iguais1. Recentemente, com a deriva securitária do espaço transfronteiriço, existe mesmo uma norma ISO2 que regula os aspectos técnicos e a tipologia dos retratos a utilizar nos passaportes ou em documentos com dados biométricos destinados a serem lidos por uma máquina.
Outro caminho percorrido por estas imagens e pela prática do retrato nas máquinas automáticas diz respeito a uma vivência mais privada, íntima do retrato, isolado ou de grupo, frequentes vezes a dois. O isolamento da cabine favorece a transgressão o que levou, logo de início, à sua utilização nos limites do público/ privado, na fronteira do ilícito e a que a ausência de prova (o negativo) garante o anonimato. Igualmente tem sido objecto de grande atenção e utilizada largamente em inúmeros projectos artísticos que vão da utilização que o grupo surrealista lhe deu, por exemplo na construção do famoso retrato colectivo a Francis Bacon que a utilizou conscientemente no seu trabalho e sobre ela reflectiu, de Warhol e Chuck Close a inúmeros projectos pessoais, os exemplos sucedem-se.
Do ponto de vista do acto fotográfico é uma técnica paradoxal, uma câmara sem operador, com todas as decisões técnicas pré-definidas, que desconhecemos, em que nada se decide para além da pose, um quase auto-retrato, uma imagem no espelho que por acaso se fixa. No isolamento da cabine, quando individual, é um acto solitário. Ensaia-se uma pose que não se vê, introduzem-se as moedas, surge um aviso luminoso que nos distrai e nunca nada nos prepara para a intensa luz do flash que nos cega daí para a frente, uma pequena morte que se prolonga na espera da tira húmida que sai do silêncio interior da máquina para as nossas mãos3.
PMC/ P.M.I. Passport (cujo título foi retirado da marca de papel fotográfico que se encontra no verso de algumas das tiras e que para além de uma data e de um local, manuscritos, são as únicas inscrições que se encontram no seu verso), parte de um conjunto de fragmentos de imagens resultantes da utilização desta tecnologia. Enigmáticas por natureza, nada se sabe sobre quem, como e porquê aparece naquelas tiras e é deste grau zero que José Luís Neto parte para o seu trabalho. Assume o fragmento, o lado objectual, físico, da fotografia e trata-a com cuidados de conservação como se de um objecto valioso, quase arqueológico se tratasse, com um grande rigor de apresentação. Esta importância dada à materialidade do suporte fotográfico tem sido uma constante na sua obra e ocupou inteiramente os projectos High Speed Press Plate e Classic 111, ambos de 2006. Estas imagens são então utilizadas como base para um trabalho que vai interrogar a natureza e os limites do fotográfico, da representação e da autoria. A maioria destas imagens, naquilo que se pode ver, tem falhas do ponto de vista técnico; apresentam imagens duplas, sobreposições invertidas, aberrações cromáticas, algumas estão desfocadas (o que é uma entrada no mistério: porque razão alguém guardaria de si tão vasto conjunto falhado). Do ponto de vista da representação, à excepção de uma, todas se assemelham na mesma ausência de qualquer expressão, de qualquer traço revelador de si. São apenas isso; alguém, algo, que aparece. Dois dos fragmentos representam-se a si próprios e documentam o próprio processo, os seus limites, da exposição total à escuridão profunda, representada aqui no preto e no branco porque o processo é directo.
Por um processo de apropriação (através do qual reconhecemos o autor) que vai passar pela reprodução e ampliação de fragmentos precisos do material base, mantendo uma linha de corte que passa pelo ombro, José Luís Neto trabalha ao nível da escala (tema que faz parte da própria natureza do processo fotográfico na miniaturização do mundo) e aproveita a dimensão pictórica da imagem desviando-a para uma categoria diferente do retrato original. Ao desfocar ligeiramente a imagem, introduzindo mais um desvio em relação à nitidez relacionada com a objectividade fotográfica, assistimos a um segundo afastamento em relação à identidade do representado. O rosto torna-se mais difuso e apenas o olhar, centro nodal do retrato, nos interroga na sua dissolução, na perda progressiva do seu carácter icónico tal como nos acontece a nós, no isolamento e no silêncio da cabine até que uma violenta luz nos venha cegar.

Francisco Feio, Outubro de 2008

notas:
1 a partir desta ideia, Serge July imagina o que seria um museu da identidade francesa, feito a partir dos arquivos de identidade: “o que nos ficaria era a ausência de expressão […] haveria, neste museu imaginário, uma atmosfera concentracionária, sufocante, como um odor de morte prolongada. A França viraria um mausoléu onde finalmente procuraríamos em vão identidades perdidas.” In Identités, de Disdéri au Photomaton, Photo Copies, CNP, Paris, 1986

2 trata-se da norma ISO/IEC 19794-5 de 2005 que, na categoria das tecnologias de informação, trata da troca de dados biométricos e cuja parte 5 regula precisamente os dados da imagem do rosto em termos que vão desde as questões tecnológicas como é, entre outros, o caso da exposição, qualidade, espaço de cor, fundos, a questões de carácter estético como o tipo de pose, ou ainda a questões de carácter mais cultural como é o caso de cortes de cabelos, acessórios (piercings, colares, óculos) ou religioso como o uso do véu, e evoluiu a partir das exigência de segurança por parte das autoridades aeroportuárias. Em França, a empresa Photomaton foi certificada para a realização de fotografias que garante serem sempre aceites pelas autoridades. As cabines têm instruções precisas sobre o comportamento do fotografado quanto a todos estes requisitos, com a indicação expressa de que não devem sorrir (ausência total de expressão que as possa individualizar em determinado momento) e graças à tecnologia digital foi possível sobrepor à imagem uma grelha guia para que nada fuja um milímetro à tolerância, pouca, admitida pelas autoridades (a máquina de reconhecimento facial e de leitura mecânica dos dados biométricos).

3 as próprias máquinas foram evoluindo e as tiras acabaram por sair quase secas. Algumas tinham um sistema de ventilação na saída que ia secando a tira. Hoje, com as tecnologias digitais na captação e impressão, desapareceu a espera e o carácter físico e sensorial que a humidade na prova transmitia e a fazia aproximar da prática laboratorial.

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